Postado por Paulo Cezar Soares | Quinta-feira, 17 de Dezembro de 2015

Jornalista e professora Cecília Olliveira: “A falta de contato com a realidade popular é traduzida nos noticiários.”
Especialista em criminalidade e segurança pública, a jornalista Cecília Olliveira, em entrevista para o blog Na Campana, criticou a cobertura policial da imprensa, que considera reducionista, e os programas policiais televisivos. Explica que a sociedade fica sedenta de “justiça” (entre aspas porque o desejo é por vingança, frisa Cecília). “A polícia age como a sociedade espera. As políticas públicas não são reestruturadas para resultados a médio e longo prazo e assim vai. O imediatismo nos torna reféns e vítimas dessa situação”. Ex-assessora de comunicação do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens - PRVL -, uma iniciativa do Observatório de Favelas realizada em conjunto com o UNICEF e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, coordenou a equipe de comunicação da Redes da Maré, responsável por pelo jornal Maré de Notícias, com tiragem mensal de 35 mil exemplares. Ambas as instituições estão sediadas dentro do Complexo da Maré, conglomerado de favelas localizado na Zona Norte do Rio.
Na sua opinião, quais são os principais erros cometidos na cobertura policial?
Os erros são muitos. Há erros nos veículos, que funcionam como uma linha de produção e acabam por tornar a cobertura policial reducionista, muitas vezes publicando apenas a “versão oficial” da polícia e/ou Secretaria de Segurança e há os erros dos profissionais, que se tornam porta-vozes das instituições de segurança, em alguns casos, voluntariamente. Acabam criando uma falsa sensação de segurança (ou falta dela, depende da área) e criando um mundo paralelo. Todo jornalista sabe: crimes violentos são eventos extraordinários, incomuns, mas isso, na comparação com os demais crimes. Furtos não são notícia, por que é cotidiano, por exemplo. Uma pesquisa do cientista político Tulio Khan deixou isso claro. Ele comparou as notícias que saíram na Folha de S. Paulo aos registros policiais.Entre 1997 e 1998, 2,7% das notícias sobre crime que saíram na FSP tratavam de furtos, mas este crime corresponde a 45% dos registros da polícia nesse período. Já o crime de sequestro representa 10,6% das notícias sobre crime publicadas na Folha, mas isso correspondia a 0,0001% dos registros da policia em SP. Ou seja: vivemos num mundo que parece perigoso. E isso é bom para quem trabalha com isso: indústria das notícias, do armamento, da segurança privada.
Fale um pouco sobre a diferença de tratamento dispensado aos ricos e aos pobres, o pessoal das periferias e das favelas
A mídia é o retrato da nossa desigualdade. Quem são as pessoas que se formam em jornalismo? Onde moram? Qual seu gênero? Qual sua etnia? Onde moram? Eles informam o quê, para quem? Que tipo de pauta é considerada relevante por pessoas com determinada formação? De acordo com uma pesquisa da FENAJ, feita em 2012, o jornalismo é feito por mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos. Apenas 5% dos jornalistas são negros. 45% nunca atuaram nos movimentos sociais. 61% foi formado em faculdades particulares. Isso deixa claro que precisamos que pessoas negras e periféricas atuem no fazer jornalístico. A falta de contato com a realidade popular é traduzida nos noticiários. O racismo institucional é reproduzido instantaneamente nas linhas editoriais, nas novelas, nas grades televisivas, nas revistas. Isso é mais facilmente percebido nas manchetes policiais, onde é perceptível a diferença de tratamento entre traficantes x usuários e dependentes de drogas x crackudos. A semântica escancara isso.
Pesquisa aqui: http://www.fenaj.org.br/relinstitu/pesquisa_perfil_jornalista_brasileiro.pdf
Os programas televisivos exibidos na Record e na Bandeirantes contribuem para perpetuar a violência urbana e da polícia?
Como o dito na primeira pergunta, o jornalismo policial cria uma realidade paralela. E essa realidade demanda uma “resposta dura e urgente”. Isso é a porta aberta para ações não planejadas, caras e não raro, letais. É um ciclo dificil de ser quebrado. A sociedade fica sedenta de “justiça” (entre aspas porque o desejo é por vingança), a polícia age como a sociedade espera, as políticas públicas não são reestruturadas para resultados a médio e longo prazo e assim vai. O imediatismo nos torna reféns e vítimas dessa situação.
Por que temos uma polícia tão violenta e mal preparada?
A resposta a esta pergunta daria um estudo sociológico. Não é simples, mas vou tentar resumir. Nós estamos numa guerra, a “guerra às drogas”. E por que as aspas? Porque não existe guerra contra coisas, mas sim, contra pessoas. E qual o perfil do “inimigo” nesta guerra? Majoritariamente negros, pobres, moradores de áreas populares. Nestas áreas, tudo é permitido, afinal, há de se salvar a sociedade do “mal” que ali impera. Nos discursos de autoridades fluminenses isso fica muito claro. Vejamos alguns exemplos:
“Um tiro em Copacabana é uma coisa. Na Favela da Coréia é outra”
(Aborto) “Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”
“Temos que optar e seguir em frente”, defende. Para o secretário, os confrontos são inevitáveis por causa da capacidade bélica dos traficantes. Ao Estado, ele chegou a dizer que não pode “fazer um bolo sem quebrar os ovos”
Em uma situação de “guerra”, a violência tem um verniz de legalidade. A polícia não é mal preparada. Ela cumpre com louvor a missão que lhe é designada. Ela é preparada para a guerra e cumpre muito bem esse papel. Então, o que temos que fazer é discutir a política de drogas e rechaçar esse estado de guerra.
A senhora é a favor da liberação das drogas?
Para começarmos a falar sobre drogas precisamos dar os nomes certos aos bois. “Liberação” é o que temos hoje. As drogas já são liberadas. Ninguém precisa dar mais do que 3 telefonemas para conseguir comprar algo, caso queira. Eu sou a favor da reestruturação da política de drogas, com a descriminalização e legalização de toda a cadeia produtiva das drogas arbitrariamente tornadas ilícitas e regulação do mercado.
Até que ponto a morosidade da Justiça contribui para a impunidade. Afinal, “Justiça que demora não faz justiça”
A justiça funciona, mas para quem e com qual objetivo? O Brasil prende muito. Mas prende mal. A política de encarceramento em massa proporcionou, nos últimos 20 anos, um aumento de 379% no número de presos no Brasil (a população do País cresceu 30% no mesmo período). Essa política não foi acompanhada pelo descongestionamento do acesso à defesa e à Justiça. No País, 43,8% das prisões são provisórias. No último balanço, de dezembro de 2012, somavam 41,8% . Ou seja, prendemos muita gente. Estas pessoas foram punidas. Então, o que deve ser apontado não é a impunidade, pois punimos muito. Devemos apontar a seletividade do sistema penal: É o negro, é o pobre, é o favelado que vai preso. E, principalmente no caso de tráfico de drogas, claramente a legislação é uma legislação que criminaliza a pobreza. Das pessoas presas no Rio de Janeiro, 71% delas são negras, sendo que apenas 51% da população fluminense se declara negra.
E a privatização dos presídios? Como analisa essa questão? Estão querendo privatizar todo o sistema prisional
Exatamente porque prendemos mal, isso é um problema. Quanto mais presos, maior o lucro. Se hoje 44% da população carcerária do país é provisória, temo que isso aumente quando o objetivo das prisões for o lucro. Na primeira penitenciária privada desde a licitação, em Minas Gerais, o Estado garante 90% de lotação mínima e seleciona os presos para facilitar o sucesso do projeto. Como garantir a garantia de lotação? Eu aposto na já comum arbitrariedade e ilegalidade. Um preso “custa” aproximadamente R$ 1.300,00 por mês, podendo variar até R$ 1.700,00, conforme o estado, numa penitenciária pública. Na PPP de Neves, o consórcio de empresas recebe do governo estadual R$ 2.700,00 reais por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27 anos, prorrogáveis por 35. Pessoas não podem ser comodities.
O projeto de lei sobre a redução da menor idade penal (de 18 para 16 anos) assim como o PL que tem como objetivo revogar o Estatuto do Desarmamento são projetos oportunistas?
Ao meu ver, todos estes projetos tangenciam a arbitrária Lei de Drogas. São apêndices de uma industria rentável, como citado acima.
É difícil encontrar um aluno de jornalismo que, após formado, queira trabalhar numa redação como repórter de polícia. Como a senhora analisa essa questão?
É uma pena. Precisamos de sangue novo para reformular o Jornalismo nessa área tão importante. Por outro lado fico muito feliz que online isso tem sido invertido. Coletivos de Comunicação de várias periferias tem colocado a mão na massa e feito cobertura de áreas onde o jornalismo de massa não adentra.
Cite dois repórteres de polícia que a senhora admira?
Vitor Abdala e Leslie Leitão.