Postado por Paulo Cezar Soares | Quarta-feira, 21 de Maio de 2014

Publicado pela Editora da Universidade Federal Fluminese - UFF - o livro (I)legal - Etnografias em uma fronteira difusa é o resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores, professores de antropologia de universidades brasileiras e argentinas, cujo tema é a fronteira entre o legal e o ilegal, o formal e o informal. São temas que permeiam a vida contemporânea, como por exemplo, o uso da função pública, a questão da corrupção, da ilegalidade, da omissão das autoridades diante de determinadas situações. É uma pena que trabalhos de qualidade ímpar, como os apresentados no livro em tela, fiquem restritos - na maior parte dos casos - à área acadêmica.
O blog Na Campana, com o objetivo de contribuir para a divulgação do livro, optou por realizar não apenas uma resenha, como é de praxe, mas colocar na íntegra alguns temas, integrados na linha editorial do blog, como por exemplo, O PCC: da organização à ética - artigo de Karina Biondi*.
Organizadores do livro - Antônio Rafael Bbarbosa*, Brígida Renoldi* e Marcos Veríssimo*.
Em maio de 2006, um balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informava rebeliões em 84 unidades prisionais (das quais dez fora do estado), 299 ataques a ógãos públicos, 82 ônibus incendiados, 17 agências bancárias alvejadas a bombas, 42 policiais e agentes de segurança mortos e 38 feridos. Esse acontecimento, que foi veiculado na imprensa como “os ataques do PCC”, levou a população de São Paulo a se fechar em suas casas e ganhou repercussão internacional. Intelectuais, políticos e profissionas da segurança pública foram mobilizados para refletir sobre o fenômeno que insurgira com tamanha força: o Primeiro Comando da Capital (PCC). Desde então, muito se disse sobre ele, sobre suas leis, sua hierarquia, sobre o organograma do que seria essa “organização criminosa”. Os resultados de minha pesquisa apontam para um PCC substancialmente diferente da imagem que esses discursos forjaram. Esse é um dos poderes da etnografia: revelar aspctos insuspeitos dos fenômenos sociais. Como pretendo apresentar neste artigo três aspectos se sobrassaem por suas dissonâncias com relação ao que costuma ser dito: (1) o PCC não funciona na base de leis; (2) ele não é uma estrutura hierárquica piramidal (embora formações hierárquicas não cessem de aparecer em seu interior); (3) o conceito de crime organizado não é apropriado para qualificar o PCC. Essas características negativas tornam mais difícil a tarefa de definir o Comando. (O PCC é também chamado, por seus interlocutores, de Comando, Partido, Quinze - em referência ao número 15.3.3, que anuncia a ordem de suas iniciais no alfabeto) Certamente porque ele hoje foge de qualquer classificação ao se multiplicar assim que tentamos apreendê-lo. Ele se transforma assim que mudamos o ponto de vista. Entretanto, ao final do artigo pretendo apresentar algo que, de acordo com os seus próprios integrantes, caracteriza o PCC: a existência de uma ética.
Nascimento e expansão
“Tudo começou e nasceu no cárcere após 1992, com o fato mais bárbaro, cruel e covarde, um massacre contra os presos, a morte de 111 presos no Carandiru, SP por policiais militares, a mando do governo e segurança pública de SP” (Trecho extraído da cartilha, documento redigido em novembro de 2006 e que circulou pelas prisões paulistas. A cartilha constitui um movimento autorreflexivo dos próprios autores dos “ataques do PCC” que repassa a trajetória que antecedeu esse acontecimento, avalia as ações e seus resultados e propõe diretrizes para movimentos futuros) De acorco com os prisioneiros, estava lançada a semente para o que viria no ano seguinte: o nascimento do PCC.
A Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, foi inaugurada na década de 1920 como um presídio-modelo, com capacidade para 1.200 homens (CANCELLI, 2005, p.150). Ao longo se sua história chegou a abrigar quase oito mil presos e ser considerado o maior presídio da América Latina. Em 1992, um episódio daria início a processos que tiveram importantes consequências no universo prisional paulista. Uma intervenção policial com o propósito de dar fim à rebelião instaurada no Pavilhão 9 resultou na morte de 111 detentos, o que ficou conhecido como “Massacre do Carandiru”.(Este número é controverso. Presos que sobreviveram ao “massacre” relatam um número maior de mortos, cujos corpos teriam sido retirados da instituição por caminhões destinados à coleta de lixo antes da contagem que determinou o número oficial).
Esse acontecimento teve ampla repercussão internacional e chegou a colocar o país no banco dos réus na Corte Interamericana, da Organização dos Estados Americanos. No plano político, motivou a criação da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), à qual foi atribuída a responsabilidade de elaborar projetos para a desativação da Casa de Detenção. Entre o “massacre” e a desativação do presídio, em 2002, o universo prisional sofreu grandes transformações, decorrentes de processos simultâneos que transcorriam independentemente, mas que se tocavam a todo momento.
O primeiro processo é o crescimento vertiginoso da população carcerária do Estado de São Paulo, que em 1992, totalizava cerca de 52 mil presos distribuídos em 43 unidades prisionais e, ao final de 2002, subiu para quase 110 mil em cerca de 80 unidades.
Esse cescimento, contudo, ocorreu sem suscitar grandes alardes e o principal motivo para essa discrição está relacioado ao segundo processo responsável pelas transformações das prisões após o “Massacre”: a desativação das carceragens das Cadeias Públicas e Distritos Policiais concomitantemente à construção de prisões no interior do estato ou, quando na Grande São Paulo, em áreas mais afastadas dos centros. Se, por um lado, o número de vagas das novas prisões possibilitaram reunir uma quantidade maior de presos do que nas carceragens, por outro, a diversificação de suas localizações permitiu diminuir a concentração de prisioneiros nos grandes centros urbanos. Essa pulverização evitou o impacto visual que o crescimento da população carcerária poderia causar, camuflando a política de encarceramento em massa colocada em prática pelo estado paulista. Entretanto, a instituição de maior visibilidade entre todas as prisões paulistas mantinha-se de pé. A desativação da Casa de Detenção foi retardada em função da carência de vagas no sistema prisional, mantida pelo crescimento da população carcerária, desproporcional ao número de vagas criadas com a construção de novas unidades. Ela só ocorreu depois que a instituição foi considerada o centro da articulação da chamada “megarrebelião”, quando, em fevereiro de 2001, 29 prisões se rebelaram simultaneamente, ação que envolveu cerca de 28.000 presos (SALLA,2007.p.82).
A “megarrebelião” de 2001foi a primeira grande ação do PCC, cujo nascimento e crescimento ocorreram silenciosa e imperceptivelmente para a grande maioria da população do estado. O nascimento do PCC constitui o terceiro processo responsável pelas transformações do universo prisional, ocorridas após o “massacre”. (A relação entre o “massacre” e o nascimento do PCC é colocada pelos próprios prisioneiros na cartilha citada anteriormente. Marcola, em seu depoimento à CPI do Tráfico de Armas, também coloca o “massacre do Carandiru”como um dos motivos do nascimento do PCC: “relacionado ao que aconteceu no Carandiru, a princípio. Só que o diretor do Carandiru foi para Taubaté, e lá ele impôes a mesma lei de espancamento. Então, quer dizer, juntou a situação do Carandiru com a de Taubaté, deu o PCC. Disponível aqui.).
A desativação do Carandiru pode ser considerada um acontecimento que, longe de marcar o fim desses três processos-crescimento da populaçãocarcerária, transferência dessa população para prisiões constrídas longe dos grandes centros e surgimento do PCC -, reúne-os em um ponto de congruência. A partir daí, os passageiros do metrô de São Paulo não mais avistram detentos nas janelas de suas celas; as unidades prisionais deixaram de ser cenário do cotidiano da maioria dos paulistanos; delegacias não mais abrigavam presos que ofereciam perigo aos vizinhos. Por mais que o número de presos aumentasse, eles não estavam mais sob os olhos da população paulistana. A mudança das prisões, das regiões centrais para as periféricas, e, em seguida, para as cidades mais longínquas do interior paulista, também fez do PCC um fenômeno distante. Mesmo que atuasse igualmente nas periferias das cidades, tratava-se sempre de áreas de atuação longíquas.
Se hoje o PCC está presente em mais de 90% das psiões paulistas e em grande parte dos territórios urbanos de São Paulo, no inicio ele era só mais uma entre as várias gangues que disputavam espaço nas celas, pátios, galerias das prisões. Embora essa expansão não tenha ocorrido sem derramamento de sangue, a força bruta não era um diferencial do PCC. Segundo relatos, suas ideias eram sedutoras. Estavam reunidas no queMarques (2008, p.289) denominou de uma dupla política: a “paz entre os ladrões” e a “guerra contra a polícia”. A ideia era que os presos precisavam parar de guerrear entre si e se unir. Só assim poderiam enfrentar aquilo que consideram como “abusos do Estado”, a fim de impedir que acontecimentos como o “massacre de Carandiru” voltassem a acontecer.
O nascimento do PCC é visto por muitos presos como o fim de um tempo de guerra de todos contra todos, em que a ordem vigente era “cada um por si” e o mais forte vence”. Até então, as agressões físicas e as violências sexuais eram bastante recorrentes; para evitá-las, muitas vezes não havia outra saída senão aniquilar o agressor e adicionar um homicídio à sua pena. Os prisioneiros se apoderavam dos bens disponíveis, desde rolo de papel higiênico até a cela, para vendê-los àqueles que não conseguiam conquistá-los à força.
Por isso, quando perguntei a um preso que passou mais de 30 anos de sua vida na cadeia se houve alguma mudança após o surgimento do PCC, ele abriu um sorriso e me disse, com os olhos brilhando: “Ah…o Partido! Com o Partido a nossa situação melhorou muito, não tem cmparação”. A proposta do PCC, que envolvia uma mudança na ética dentro das prisões, era sedutora, motivo pelo qual rapidamente conquistou adesões dentro e fora das prisões.
Efeitos da igualdade
Embora a proposta do PCC, em seu surgimento, fosse acabar com essas formas de opressão de um preso por outro, não tardou para o “poder subir à cabeça” dos fundadores. Os prisioneiros afirmam que eles passaram a praticar as opressões que teriam proposto combater e, por isso, não tardou a ocorrer o que pode ser chamado de uma revolução interna. Assim, a história do PCC pode ser dividida em duas eras: a era dos fundadores e a era da igualdade. Na primeira, que vai desde o seu surgimento até o início da década de 2000, era possível encontrar uma estrutura hierárquica piramidal que contava com postos de generais e uma divisão por escalões. Os fundadores tinham a palavra final em qualquer decisão e contavam com generais e soldados que lhes deviam obediência. Jozino (2005) narra as disputas pelo poder no interior do Partido e o modo pelo qual antigos líderes morreram ou foram excluídos do PCC. Em meados de 2003, com a deposição dos últimos fundadores, a igualdade foi adicionada ao seu antigo lema: “Paz, Justiça e Liberdade”. Essa incorporação instaurou uma tensão que infiltra e percorre as capilaridades do PCC, implicando formações e supressões simultâneas de focos de poder, ao lado de construções e dissoluções simultâneas de hierarquias. Diversos mecanismos e estratégias passaram a ser acionados para a construção de um Comando entre iguais, instaurando tensões em toda a sua dimensão política. Essa adição, portanto, ativou muitas transformações no funcionamento do PCC, transformações que nunca param de se transformar e que abarcam toda a existência daqueles que participam do PCC. Desde então, dizem os prisioneiros, o que mais se faz numa cadeia é debater sobre o que é certo, debates que dizem respeito desde ao que é mais cotidiano até decisões capitais. O que, em um tempo anterior ao PCC, era decidido pela força bruta, hoje é objeto de debates. As batalhas hoje, são discursivas.
Um exemplo bastante trivial de como o PCC funciona no que chamo de era da igualdade é a decisão sobre qual detento dormirá na cama (burra) o qual dormirá no chão (praia), em uma cela superlotada de um Centro de Detenção Provisória (CDP). O cenário de venda de celas ou de camas, que aparece no filme Carandiru ou no livro que o inspirou ( VARELLA, 1999), hoje é inconcebível em uma prisão que conta com a presença do PCC. Abolidas a comercialização, a extorsão e as dusputas violentas por esses espaços, tornou-se necessário estabelecer critérios para definir onde dormiriam. Um desses critérios é a prioridade que o residente tem ante o primário. Até bem pouco tempo atrás, a prioridade era dos presos com maior tempo de cadeia, calculado a partir da soma dos períodos de reclusão de toda a sua vida. Assim, alguns presos que já haviam cumprido outras penas, quando detidos novamente, não importa o período que passaram na rua, podiam subir direto pra burra. Com isso, outro preso que a estava ocupando deveria voltar para a praia. Não era mais, portanto, a condição financeira ou a posição hierárquica que definiria o acesso à cama. Ela seria utilizada pelos que haviam passado por mais sofrimento. Mais recentemente, para evitar a manipulação dessas categorias na disputa pelo direito de dormir na burra, definiu-se o critério de tempo ininterrupto de prisão, ou seja, se uma pessoa for para o Mundão, não impota o tempo de permanência na rua (um dia é o suficiente), volta como primário nessa disputa. Afinal, “ o mano já foi pra rua, gozou, proveitou o Mundão. Não é justo que tire da burra o companheiro que tá no sofrimento já faz uns dias. É praia! Não é mérito pra ninguém tirar cadeia. O mais velho da cadeia é o boi (Boi, na linguagem dos presos, é o banheiro da cela). Isso mostra como novas reflexões são sempre acionadas com vistas a instaurar, em suas práticas, o ideal de igualdade.
Essas reflexões vêm das torres, posições políticas das quais partem orientações, comunicados e recomendações para todas as unidades prisionais, os chamados salves. Essas posições são ocupadas transitoriamente: um preso que ocupa hoje pode deixar de ocupá-la amanhã, quando outro o substituirá sem alteração do seu modo de funcionamento. Assim, um preso que hoje é torre de sê-lo amanhã. Não há, aqui, uma estrutura hierárquica vertical ou uma hierarquia consolidada em pessoas. A ocupaçãp dessas posições políticas também não concede ao prisioneiro o privilégio de mando. Não se trata de uma relação de mando-obediência. Nesse sentido, mesmo quando ocupa a posição de torre, não é esperado que o preso mande nos outros, que lhes dê ordens. Espera-se que ele seja capaz de enxergar vários aspectos das questões que lhe forem colocadas, que ele saiba ouvir e tenha capacidade de reflexão e discernimento para definir o que é o certo. Mas isso nunca é feito isoladamente, sem que as questões sejam discutidas com outras pessoas. Como costumam dizer, “nenhuma decisão pode ser isolada”, pois isso revelaria que alguém quer ser mais do que os outros.
O que está em jogo quando se debate sobre o que é certo é que ninguém é mais do que ninguém. Após a adição da igualdade, a expressão “é de igual” passou a ser uma das mais proferidas entre os prisioneiros. No entanto, manter a posição de igual não é nada fácil. Exige muitos investimentos, por parte de cada preso, a fim de não subjugar ninguém e nem ser subjugado. Não mandar e nem receber ordens de outros prisioneiros, em nenhum âmbito de sua experiência prisional. Ser, ao mesmo tempo, humilde e cabuloso. (Marques (2010) relacionou os conceitos de cabulosidade (substantivação do atributo cabuloso) e de humildade para discutir a igualdade no Comando a partir do depoimento de Marcola na CPI do Tráfico de Armas. Cabuloso, por sua vez, é aquele que não deixa ninguém subjugá-lo, entrar na sua mente. É aquele que, em suma, é senhor de si).
Mesmo com todos esses esforços, as diferenças não param de aparecer e, com elas, manifestações hierárquicas. Mas assim que aparecem, se deparam com o mais importante princípio norteador vigente no PCC: a igualdade. O ideal de igualdade entra em conflito com práticas políticas que estão no limiar do exercício de poder de uns sobre outros. Ele instaura tensões que percorrem toda a exisência do PCC e dos que com ele se relacionam. O resultado dessas tensões é a existência de hierarquias que aparecem a todo momento, mas que não se cristalizam na forma de uma estrutura hierárquica.
Se a ideia de que um preso manda ou obedece às ordens de outro é absolutamente rechaçada, não se pode pensar as torres como parte de uma estrutura hierárquica. É igualmente equivocado conceber os salves como ordens ou atribuir-lhes a metáfora de lei. É muito frequente ouvir dos prisioneiros que ninguém é obrigado a nada ou que nada é proibido, mas tudo vai ter consequência. A ideia é que não há pessoas com autoridade para punir outras, mas que cada uma é responsável pelos seus atos (o que está intrinsecamente relacionado com o horror, por parte dos prisioneiros, do mando). Não é à toa que os presos não falam em termos de punição, mas de consequências. Não se trata de uma simples troca de expressão, pois se retira a autoridade de uns sobre os outros para depositar na pessoa toda a responsabilidade pelos seus atos. Os salves seriam mais bem definidos como orientações, recomendações, comunicados que são o resultado de muitos debates e, ainda assim, não fazem cessar os debates sobre o que é o certo. Como tais, não são obedecidos cegamente. Seguindo o mesmo exemplo, a prioridade para ocupar a burra pode ser concedida a algum preso enfermo, caso seus companheiros debatam e decidam que isso é o certo.
Entretato, ceder a cama a um enfermo pode tanto ser bem-visto como mal-visto, a depender de como isso for avaliado em um debate, de quem são os envolvidos, das circunstâncias, de quão grave é a enfermidade, de como e por quem essa concessão for contestada. Ao mesmo tempo que alguém pode sofrer consequências por ceder a burra a um enfermo (o que contraria a orientação do salve), ele também poderia sofrer consequências por não fazê-lo (mesmo argumentando que tenha agido de acordo com o salve)
O certo nunca é dado de antemão. É sempre objeto de debates, resultado das circunstâncias e da capacidade do prisioneiro sustentá-lo. Assim, mesmo o que é decidido como certo hoje, pode ser rediscutido e, futuramente, deixar de sê-lo. Isso demonstra a centralidade dos debates na vida prisional, na qual não há leis que prescrevem penas para quem as transgride. Mesmo quando meus interlocutores se referem às leis do crime, o conceito de lei apresenta um conteúdo diverso daquele utilizado comumente. E é na maneira de operar o conceito que é possível notar essa diferença. Assim, se fôssemos atribuir uma metáfora para relacionar essas práticas a algo mais familiar, não seria “lei” a mais apropriada, mas “jurisprudência”.
Da organização à ética
Chamar as orientações e os procedimentos enconrados no PCC de leis, regras, ordens ou julgamentos consiste em aplicar metáforas que, em vez de auxiliar, prejudicam a análise, visto que elas conduzem a um espelhamento da forma social que conhecemos. Ao abandonar essas metáforas, é possível enxergar um PCC que não funciona na chave jurídica, no qual não existe um código ou leis e punições prescritas àqueles que as transgridem. O que existe é um debate incessante sobre o que é certo e sobre como conduzir suas existências pelo certo. Vê-se também um PCC que, por um lado, não pode ser caracterizado como formação hierárquica, mas, por outro, tem a hierarquia como um fantasma que não para de aparecer no seu interior. Os prisioneiros tecem reflexões riquíssimas a esse respeito, reflexões que são indissociáveis de suas próprias experiências cotidianas e da constituição atual do PCC. O abandono de vícios de pensamento, de avatares do pensamento ocidental e uma atenção a essas reflexões abrem todo um campo de conhecimento que não seria possível sob o viés do conceito de “crime organizado”.
Enxergar o PCC sob o prisma do “crime organizado” nos levaria a atribuir-lhe uma estrutura e um modo de funcionamento condizente com as características conferidas a esse conceito (hierarquia, divisão de lucros, divisão do trabalho, planejamento empresarial, simbiose com o estado). Nos levaria, ainda, a considerá-lo como um “estado pararelo” ou uma “empresa capitalista”. Definir o PCC como “organização criminosa” conduz-nos a revesti-lo dessa figura fantasmática que, além de não revelar muito acerca de seu funcionamento, é capaz de esconder uma grande variedade de nomes, rostos, histórias, gestos, palavras, disposições, mas também condutas, embates, estratégias, lutas, planos, guerras. São aspectos da vida prisional que, mesmo que em um primeiro momento estivessem ligados a um vetor organizacional (a intenção primeira dos fundadores era que os presos se organizassem para enfrentar o que chamam de abusos e opressões), penetraram as existências dos prisoneiros quando passaram a configurar uma maneira singular de ver e pensar o mundo, e também de conduzir suas vidas. A esse modo de condução dea existências, os integrantes do PCC dão o nome de ética.
Longe de reificar o PCC, essa ética permite a existência de PCCs muito diferentes um dos outros, a depender de como, onde, quando se vê. Ao mesmo tempo, é capaz não só de conduzir a existência das pessoas que a operam, mas de promover formações sociais ingulares. Ou ritmos, como chamam meus interlocutores: “cada cadeia( ou quebrada, ou cela) tem um ritmo, mas a ética do Comando é uma só”.
*Karina Biondi é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar), pesquisadora do Hybris - Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades; bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e autora do livro Junto e misturado: uma etonografia do PCC, 2010, Editora Terceiro Nome.
Antônio Rafael Barbosa é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Pesquisador associado ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
Brígida Renoldi é antropóloga. Pesquisadora do CONICET na Universidade Nacional de Misiones (UNaM, Argentina). Integrante do Grupo de Estudos sobre Poícias e Forças de Segurança, no Centro de Antropologia Social do Instituto de Desarrollo Econômico y Social (CAS-IDES, Argentina). Pesquisadora associada ao INCT “Violência, Democracia e Segurança Cidadã” e ao Núcleo de Estudos em Conflito, Cidadania e Violência Urbana, da Universidade do Rio de Janeiro (NECVU-UFRJ,Brasil).
Marcos Veríssimo é Douranto em Antropologia pelo programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Pesquisador associado ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). Membro da Comissão Sobre Políticas de Drogas da OAB/RJ.